RIQUEZAS SÃO DIFERENÇAS
Não sei bem onde, mas vi alguém dizendo: que se o pensamento ateu e materialista praticado na Europa, ali pelo século 19 quase 20, desembarcasse implacável na África, levando todo mundo a não mais acreditar em seus deuses, o prejuízo era certo – adeus tantas danças, músicas, adereços, rituais. Naquele contexto africano, na dúvida entre os deuses existirem ou não, muito melhor ficarmos com deuses-existindo: louvar seus deuses torna o homem mais divino.
Pois vocês vejam a beleza da Ave-Maria, de Schubert. Vejam o transe das velhinhas rezando terço, à luz das velas. Vejam os templos todos, espalhados pelo mundo. Os sinos. As mantas, túnicas, turbantes. Os incensos. Os cantos, os tambores. As posturas, as danças. O símbolos. Com os olhos voltados para o ceu, para o além, para a transcendência, o Homem acaba por dotar o arredor da beleza divina. Louvando o além, o ali, o homem embeleza o aqui. Não pode haver maior coerência.
Cada cultura, cada povo, cada família, escolhe livremente o modo de realizar suas louvações. Isso é, inclusive, um direito garantido pela Constituição. Mais inteligente será a pessoa desprendida o bastante para apreciar as manifestações culturais das várias religiões. Eis aí um dado, antes de tudo, cultural. Um dado artístico, antropológico. Eis o homem.
Eu mesmo, sempre gostei de religião. Fui coroinha, rezava o terço, amava os vitrais da igreja. Depois mergulhei no Rock, me identifiquei com suas celebrações. Até que um fato revolucionou tudo: vim a conhecer a Tenda Coração de Jesus, em Uberlândia. Terreiro de umbanda dirigido por Mãe Irene de Nanã, fundado há mais de sessenta anos, pelo Pai João da Bahia. Fiquei completamente arrebatado por aquelas belezas todas: tanta gente dançando, fumaça de ervas santas no ar, os ritos, a espiritualidade manifestada. A amizade. Afirmo sempre: nunca, em tanto tempo de andanças, vi tamanho amor e beleza, como vejo toda quarta-feira na Tenda Coração de Jesus.
E o que se passa é que, a despeito das garantias constitucionais, a Tenda (e a irmandade umbandista, como um todo) vem enfrentando cada vez mais dificuldades, na realização de suas celebrações. A intolerância religiosa ainda é uma realidade. Mesmo em Uberlândia, essa Salvador, com suas mil belezas afrobrasileiras. Devemos ser cuidadosos. Não pode haver prejuízo maior que o sacrifício das belezas transcendentais. E é sempre bom lembrar os Titãs, quando cantam: “riquezas são diferenças”.
publicado na coluna musicais, do jornal correio, de uberlândia