No dia seguinte à partida dos meninos, o Alê chega lá em casa me intimando a ir pra Belo Horizonte. “Completamente liso, Alê”. “Dinheiro há, simbora”. E pegamos o ônibus da noite. Na porta do teatro, noite seguinte, nos encontramos com Talles e Ricardim. Alguém da produção passou com duas garrafas de pinga mineira. E pingou na nossa mão a oportunidade de tomarmos um ácido de boa qualidade (naquela época a gente fazia isso). Antes de ocupar minha posição na sala de teatro, fiz uma rápida visita ao banheiro, jogar uma água na cara. E nos braços, por que não? Nuca, barriga, peito. Putz, qdo dei por mim, estava completamente ensopado. Eu e a camisa que tinha na época, outro decalque do às próprias custas s/a, camisa com um dragão gigante que o Moita roubou de não sei quem. Não cheguei a molhar a pessoa que tava do meu lado, foi um movimento todo cuidadoso entre pernas e poltronas, mas desconfio que eu tenha sido pra ele a enxurrada em pessoa, porque foi com um ar de reprovação que ele pulou pra cadeira mais pra lá.
E o Itamar fez um show maravilhoso, um show-happening todo erradão. Completamente bêbado dando voltas sobre si mesmo, se enrolando no cabo do violão, Itamar deu corpo à figura do estorvo. Tata Fernandes com uma doçura maternal acudindo o homem enovelado com os cabos, um ou outro baguá da plateia já ficando puto, pensando talvez no quanto tinha deixado na bilheteria: havia no ar um princípio de incerteza que nos deixava à mercê da manifestação do mais improvável, do mais surpreendente, do mais explosivo.
Sei que na quinta música o Itamar puxou a primeira de novo, e na sexta se sentou na plateia, aquela arte que ele sempre dominou, de olhar a plateia de frente, e ficou sentado uns quatro minutos, braços cruzados, uma insolência exemplar. O instrumental rodando, a Clara Bastos com uma expressão que era só pergunta e amor. O Itamar logo ali, ao lado, instaurando seu reino com a força do olhar imponente, sentado bem pertinho do cara que tinha corrido de mim. Anticlímax? pode ser, mas pra mim aquilo era momento máximo. O Itamar tinha acabado de armar uma arapuca pra morte. Foram séculos e séculos de temor à morte, todo mundo sempre se borrando, mas ali, naquele teatro em Belo Horizonte, a morte é que estava encurralada, diante da força daquele homem - a camisa silcada com um 100 % NEGRO.
Começo do show, só pra que o amigo faça ideia: Itamar está sozinho no palco, sentado em uma cadeira, quando começa a dizer: “não sei se vocês souberam: tive câncer”. Anticlímax pouco é bobagem? Coragem, amigos. “Até então, nunca tinha sentido nada” – ei, Elke Maravilha (sim, Elke Maravilha), figurando a morte, pinta no fundo do palco, rondando o Itamar com os braços arqueados – filme de vampiro dos anos vinte. Dois ou três minutos depois, entra a banda, tocando coisas como “a vida sempre por um triz/ seja de bicho bandido ou atriz”. Não sei se o show foi muito aplaudido, mas foram lágrimas e mais lágrimas enxarcando ainda mais o pano do meu dragão em preto e branco. Hoje consigo compreender porque não consegui abrir as mãos, cerradas em punho fortíssimo durante todo o período da apresentação.
Dia seguinte, em contraposição ao magnífico caos engendrado na noite anterior, Itamar e sua banda fazem um show impecável, perfeito, triunfo de apolo. Porque o dia anterior havia sido devotado a dionísio, como sabemos. E a Martim Pescador, entidade marinheira, em honra de quem Itamar e Elke entornaram suas pingas, no camarim (a Serena depois me contou isso, e eu me felicitei com a ideia de ter estado sob a água da torneira no momento em que Elke e Ita vinham bebendo e entoando cantos a Martim Pescador).
Aí hoje, tantos anos depois, dia do aniversário do homem, a nossa comitiva se prepara pra mais uma visita. O Porcas Borboletas toca depois de amanhã o Às próprias custas s/a, no SESC Bom Retiro, São Paulo. Estamos todos enxarcados de novo, mestre Ita, porque foram três semanas de ensaios diários, aqui no sertão brabo da seca mineira. Bebemos cerveja em muitos desses ensaios, vagamos nas madrugadas entre um ensaio e outro, foram dias de marinheiro longe de casa. Aventuras portuárias. Já viu marinheiro quando toma banho, passa aquele perfume forte, pisa em sapato toc toc, a ocasião sendo de respeito? Manja garbo de marinheiro recomposto de jornada longa? É assim que nos apresentamos agora, esperando ocasião de soltar o barco.
4 comentários:
Que responsa. Se já é raro um homem ter a sorte de ir ver, imagina ter tido lá e voltar pra contar. E mais ainda... ir de novo. Boa viagem.
Queria estar lá pra presenciar o feito. Levem os bons pensamentos.
(Texto bonito demais, man.)
Abraço
Pô, que texto bonito, Danilinho!
Eu queria estar na platéia pra ver vocês aí.
Gravem, tipo "as próprias custas", esse momento responsa e mágico, plis!
E, por coincidência, li, hoje, quando o carteiro cabou de deixar a "Caixa Preta" aqui pra mim.
Beijo do magro!
viver
com essa pegada danis
isso que admiro em vc
bj ;*
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