texto do marcílio sobre o carniça

E correu tudo maravilhosamente na estreia do CARNIÇA, esse fim de semana em sampa. Sei q estou devendo explicações sobre esse projeto, mas dívida para com o mundo é comigo mesmo, talento nato, vcs sabem como é.

No momento estou em retiro físico-espiritual entre as praias do litoral norte de são paulo, mas assim q voltar ao batente subo audios e videos, pq três youtubes e um picasa valem mais q mil palavras.

Em todo caso, preciso dizer q as palavras do meu amigo e consultor pessoal (e guru) Marcílio Lucas valem mais q mil youtubes.

É q o Marcílio, há mais de um ano, escreveu um texto sobre o Carniça, assim q teve seu primeiro contato com o material. Agora q o Carniça ganhou mundo, talvez seja hora desse texto tb vir brilhar aqui nas piscinas de elétrons dos monitores de nosso brazil. Reproduzo abaixo, com todo orgulho - esse é um grande momento do Star Putz - o texto do Marcílio.

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NICE TO MEET YOU, CARNIÇA

Ao se deparar com “CARNIÇA - uma áudio-ficção de danislau também”, o que pensar que vem por aí? Melhor nem tentar adivinhar: “Carniça” vai te pegar despreparado de qualquer maneira. Em “Carniça” permanece um traço marcante dos trabalhos de danislau: a vivacidade ao absorver o eterno do transitório, o poético do histórico. Seu foco na trivialidade mundana faz aparecer os lugares onde a história real é feita, antes de ser representada. Postos de gasolina, barracos malarrumados, lanchonetes semi-abandonadas, pátios de escola e as ruas da cidade. Eis os locais que Danislau costuma percorrer, eis a matéria-prima que costuma deglutir, para nos fornecer um conjunto de imagens envolventes, por serem, ao mesmo tempo, claras e inebriantes.

Na áudio-ficção ora lançada, as ruas, as calçadas e os viadutos são o lócus privilegiado, são o lócus de Carniça. E quem é Carniça? Carniça não toma banho, vive o torpor das drogas, ama a doce Doraluce e odeia Natanael. Por quê? Porque Natanael não toma banho, vive o torpor das drogas e ama a doce Doraluce. O enfrentamento é inevitável. O bairro Santa Mônica é pequeno demais para dois jovens que são um só. No entanto, a trama não se encerra nesse triângulo desamoroso. Ismael, o pastor decaído e decadente, pretende salvar Carniça pela força da lembrança de seu nome de registro: “Vamo sair dessa, Luiz?”. Mas Carniça se mostra impassível. Está feliz com a nuvem de mosquito que o acompanha e seguro de sua escolha pela lama, num tempo-espaço sem alternativas. A proximidade à sujeira do solo dá a Carniça uma tranqüilidade comovente. “Não se preocupe, porque do chão eu não passo”, afirma nosso intrépido herói, com toda serenidade de quem não quer crescer na vida. Serenidade que beira à altivez, como se demonstra na forma insolente com a qual abandona sua ex-posa, Juliete. Serenidade que beira ao deboche quando Carniça exige que seu inimigo pague sua prestação do celular. É que a escória tem suas vantagens; e Carniça pode sair dando ordem por aí. Perder liberta. Carniça perdeu tudo e ganhou a liberdade. Quase toda: a única coisa que o prende é o amor por Doraluce. Afora isso, não tem nada a perder, a não ser seu mau-cheiro.

Danislau nos apresenta a sujidade das ruas, mas não o faz por meio de uma apologia da escória. Ele não embarca na marginalidade convencional de simplesmente afirmar a “beleza do sujo”. O autor de “Carniça” é mais engenhoso e, a partir desse ambiente pesado, consegue nos brindar com imagens marcantes, revelando a sensibilidade de alguém para quem nada que é humano é estranho. Como bom “homem do mundo”, no sentido baudelairiano, Danislau é apaixonado pela compreensão sutil do mecanismo moral que nos rodeia. E, para tanto, em “Carniça”, vale-se da estratégia perspicaz de fazer poesia mostrando a miséria do mundo pela ótica particular de Carniça. Machado de Assis teve a grande de sacada de apontar o ponto de vista de um defunto como privilegiado, pois a sua posição além-vida garante o desprendimento, a franqueza e o desdém necessários para por à vista a mediocridade e as vacilações humanas. Danislau provavelmente não discorda, mas nos oferece outro ponto de vista não menos estratégico: o do abjeto, o de Carniça, livre das hesitações geradas pelo medo de perder.

Mas a liberdade presente em “Carniça” não é abstrata. As escolhas aparecem junto com os dilemas e as opressões do mundo. O campo de possibilidades de escolhas é limitado, pois a realidade só pode colocar as questões às quais é capaz de responder. À Natanael, por exemplo, coube escolher entre ser servente de pedreiro ou servente da pedra. A cabeça pensa onde o pé pisa. Além disso, “Carniça” revela que toda escolha tem o peso do rompimento. Escolher um caminho é abandonar outro. Assim, o “ex” ganha centralidade. Juliete é ex-posa de Carniça. Doraluce é ex-namorada de Natanael. Natanael – e também poderia ser Carniça – é ex-catequista da igreja, ex-coroinha do padre, ex-bailarino de funk, ex-baterista de samba e... ex-futuro-servente de pedreiro. Escolher entre alternativas é abandonar um ex, seja ele do presente ou do futuro. De qualquer forma, escolher é abandonar; escolher é excolher.

Essa teia entre liberdade, escolhas e seus limites é arrematada com o último personagem: Abílio Dias, o cantor da desgraça do mundo, com a risada mais linda do brasil. Apresentando seu inebriado e inebriante programa de jornalismo-desgraça, Abílio nos traz um “você decide” sem possibilidade de escolhas. O noticiário psicodélico coroa o fim da desventura de Carniça, mostrando o peso das escolhas, mesmo quando não existem alternativas. “Câmera, dá pra pegar o mosquitinho desse homem? Mostra a nuvem de mosquito em cima da cabeça desse homem!”. Sensacionalismo? Jornalismo barato que se aproveita da desgraça alheia? Nada disso. Abílio se exime dessa crítica, pois ele não faz a notícia: “a notícia quem faz é esse mundo sujo e escandaloso que você habita”. Abílio não tem culpa e você, telespectador, não pode reclamar, porque o final, você decide!

Mas falar dessa áudio-ficção somente pelo viés literário seria uma injustiça perante a melodia simples, porém irrepreensível de “Carniça”. A musicalidade – ora intensa, ora suave, mas sempre bem concebida – desenha o ambiente e constrói o ritmo das aventuras de Carniça, já a partir das duas primeiras faixas em que se apresenta o duelo com Natanael. Essa sonoridade versátil segue seu caminho no desabafo de Carniça, em “Juliete”; no desespero do pastor Ismael para “salvar” Carniça (em “Luis Henrique”) ou para tentar sair do seu próprio barraco (em “Pastor Ismael”); e na viagem surreal de Abílio na faixa que encerra a obra, gravada em um take só. Mas o destaque fica para outras duas faixas. Primeiro para “oi meu nome é carniça”, faixa dançante de auto-proclamação, que poderia cair bem em qualquer balada noturna, mostrando que o descompasso da vida de Carniça também pode ser uma batida perfeita. Do mesmo modo, merece nota o momento perfumado desta trama marcada pela ausência de banho: a faixa “Doraluce”, baladinha romântica com direito a crianças brincando ao fundo, que pinta com primor a doçura da moça xodó-da-professora-e-de-todo-mundo.

Depois de tantas palavras, como definir sinteticamente este trabalho de danislau também? É uma ópera marginal sobre um malandro dos tempos de explosão do crack, das neopentencostais e do jornalismo-desgraça. Por isso, Carniça não tem a elegância do malandro carioca dos 40’s, presente na ópera do Chico. E seu duelo com Natanael não tem o ar de luta do bem contra o mal, como o duelo entre João de Santo Cristo e Jeremias nos 70’s, na conhecida áudio-ficção da legião. “Carniça” é mais atual e, apesar de despretensioso, é mais abrangente, porque uma investigação mais cuidadosa pode mostrar que “carniça” somos nós e nosso mundo fedorento. Quem quiser saber mais, que investigue o Carniça: tampe o nariz com uma mão e meta o play com a outra.

3 comentários:

andré.ueg disse...

Muito bem, fiquei comovido e assombrado com o Carniça. Sentimentos familiares. Assisti-o em meio a um evento na UFU sobre a infância ou a criança. Ao assisti-lo três coisas passou pela minha cabeça. Primeiro, Danislau mantém a verve poética que assolou a megalópole do pequi do Triangulo Mineiro na década de 1990. Fiquei feliz por isso. Segundo, me lembrei de uma frase de Artur Bispo do Rosário, "cada um carrega um cadáver". Acho que é mais ou menos assim, vi isso em um livro do Silviano Santiago. No texto de Danislau, a história do Carniça, poderia ser parafraseada, "cada um de nós carrega sua carniça". Por último, enfim, no jogo sábio-lírico-poético-imagético, criança-carniça, me lembrei que ha uns vinte anos atrás, exalava de fraudas de panos a carniça das crianças. Em contraposição das fraudas descartáveis que não exalam nada. As crianças não fedem como antes. Diriam alguns, não fedem e nem cheiram, o que é objeto da filosofia, psicologia,... Na matéria da poesia de Danislau, está ai, viva e mal-cheirosa, mas viva.
Um abraço.
André (Anápolis-Goiás)

Mirna disse...

Eu trabalho como um consultor pessoal na literatura. O texto me comoveu, me fez chorar.

Unknown disse...

Ouvindo agora.
Conhecendo.
Sensacional.
Caiu do nada, veio de uma busca por Juliete. Não sei nada de nada. Sem influência de crítica. Sem filtros e sem pudor.
Ouvindo repetidamente.
Obrigado senhor.
Como me livrar
Ouvindo repetidamente.
Repetidamente
Acordando....