As águas escorregando pelo asfalto definem seus caminhos: é a enxurrada. Cai água do céu, e os guarda-chuvas, com sua beleza esplêndida, colorem a cidade cinza. Vez por outra, aparece um aventureiro. Sem a guarnição da lona do guarda-chuva, produz seu caminhar-quase-correndo, o corpo curvado, cabeça baixa, como se quisesse adiar, por meio meio-segundo, a molhança nos cabelos. E os joelhos sempre no alto, pisada mínima no chão, o esforço para tentar sair incólume do trânsito entre poças e enxurradas. Cabeça baixa, pés no alto, eis o homem natalino.
Se a benigna chuva restringe o trânsito por entre as ruas, o que se poderá dizer das duas datas do fim-de-ano? Como se postar, onde estacionar o corpo em cada um desses últimos dias? É quase uma imposição. Você tem que estar em algum lugar. E são tantas as notícias de fulano na Bahia, beltrano em Caldas Novas, que fica a impressão: estou sozinho nessa cidade chuvosa.
Mas o desafio ensina. Diante das duas datas mais opressivas do ano, diante da quase-obrigação de se estar em algum lugar, tomo a resolução: vou estar em lugar nenhum. Melhor: vou estar apenas onde estiver. Porque o lugar primeiro, o primeiro (e último) lugar, o lugar inevitável, é o dentro da gente. Liberdade Condicional, poema do Mário Quintana, deixa tudo mais claro.
Poderás ir até a esquina
Comprar cigarros e voltar
Ou mudar-te para a China
- Só não podes sair de onde tu estás
(publicado originalmente na coluna Musicais, do Jornal Correio, de Uberlândia)
3 comentários:
"Chove Chuva..."
Pior é que,conforme você me ensinou em outro texto,o "dentro da gente" anda tão cheio de gente que, em pouco tempo, corremos o risco de não ter lugar pra gente dentro da própria gente.
ô xente.
Abraços.
Ps. Passei na sua porta esses tempos e não te encontrei; preciso te levar um produto.
Genial!
Victor
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