Muito tempo atrás, estávamos eu e alguns amigos comprando uma caixa de fósforos numa venda do bairro Santa Mônica. Alguém quis tomar um cafezinho. Puxamos as cadeiras.
Aí, bem baixinho, delicadamente, entrou um Leandro & Leonardo na vitrola. Pronto, o amigo do café reclamou. Que não se podia nem tomar um cafezinho em paz etc. Perguntei: quer paz maior que tomar um cafezinho num estabelecimento do interior do Brasil ouvindo “invés de você ficar pensando nele”? Tentei sugerir ao amigo que nem tudo, em matéria de música, girava em torno do gostar ou não gostar. Não é porque ele não escuta esse som em casa, no conforto do edredon, que necessariamente tenha que desgostar do momento em que a tal música pinte no ambiente.
É preciso respeitar o Supremo DJ – o acaso. Se o correr dos fatos jogou no ar os sons do disco do Leandro & Leonardo, quem é que vai reclamar? Entre ficar incomodado e se divertir, o melhor é se divertir. O João Paulo & Daniel que tocou na galinhada de paróquia em que almoçávamos, domingo passado, fez parte daquela cena. Ajudou na composição global do espaço. Além do que, salientou nosso delicioso provincianismo. Esbravejar, empurrar o prato de plástico pra frente, como se dissesse “ah, perdi o apetite”, parece mais uma atitude intolerante. Não há como viver a vida tentando se desviar do que nossos critérios decidiram condenar como “música ruim”.
Melhor seria amar essa suposta “música ruim”. Descobrir, no lixo, o luxo. Transformar o tabu em totem, o valor negativo em valor positivo. Essa operação – devorar o oposto, o diferente, o outro – coincide com os avanços mais interessantes da história da música, e das artes em geral. O ruído, por exemplo, sempre foi indesejável para a música erudita, pelo menos até o século dezenove. A desafinação, o som do arco batendo no violino, um grito na rua, tudo era a manifestação do feio, atentado contra a ordem divina da música em execução. Até que alguns malucos resolveram transformar o tabu (o ruído) em totem. Incorporaram o indesejável. São incontáveis os frutos dessa experiência, na música pop: a guitarra distorcida, música-ruído, é um exemplo.
Oswald de Andrade, nosso intelectual mais importante, e o mais maluco, está nessa. Sua antropofagia consiste basicamente na atitude de devorar o “inimigo”. Caetano Veloso e todos os outros tropicalistas estão com Oswald. E, o mais surpreendente, estão todos com Jesus Cristo. Uma tradução possível, ainda que desconhecida, para o original em hebraico para “ame o próximo como ama a si mesmo” seria: “ame o diferente como ama a si mesmo”.
Texto publicado essa semana na coluna Musicais, do Jornal Correio, de Uberlândia.
3 comentários:
Amém-mo-nos-então!
Sempre sábios palavrões os teus.
coma o próximo como a si mesmo
coma o próximo,
como a si mesmo
bonito, bicho.
Postar um comentário